165 anos

Quando era tudo mato: saiba como era e quem habitava as terras de Santa Maria

Letícia Almansa Klusener e Maria Júlia Corrêa

Quando era tudo mato: saiba como era e quem habitava as terras de Santa Maria

Foto: Romeu Beltrão (Reprodução)

Primeira foto que se tem registro da Rua do Acampamento

Nesta quarta-feira (17) o município de Santa Maria completa 165 anos. Atualmente, se relaciona a presença dos militares e dos estudantes universitários como elementos marcantes da constituição da população. 

Mas e na época do nascimento de Santa Maria, como era? O acampamento militar instalado em 1797 para demarcação de terras entre portugueses e espanhóis é um fato mais conhecido na nossa história. Mas e antes deles, quem foram os primeiros habitantes dessas terras que hoje chamamos de Santa Maria?

Quando era tudo mato

​O professor de História da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) Júlio Quevedo conta que, segundo registros de documentação do século 17, os primeiros moradores desse território foram o Povo Tape. Outros registros também foram encontrados em relatos escritos por padres da Companhia de Jesus. Quando chegaram aqui, relataram quem era esse povo e como ele vivia.

– Os Tapes são os verdadeiros povos originários dessa região, que era conhecida como “Região dos Tapes”. Esse povo indígena vivia da caça, da coleta e da pesca, ou seja, daquilo que a natureza oferecia – conta.

O padre Antonio Ruiz Montoya, que chegou aqui nessa época, anotava relatos que foram transformados no livro chamado A Conquista Espiritual, considerado a primeira obra que fala sobre esse povo:

– Nesses relatos, Montoya fala que essa região era composta por mato e planalto, sendo chamada de Monte dos Tapes, próxima ao Rio Ibicuí, brecha por onde esses padres entraram no território gaúcho.

Quevedo também menciona o padre Adriano Formoso, que chegou aqui, acompanhado de índios guaranis. Ao fazer relatos sobre o local, afirmou que o Povo Tape já vivia milenarmente no território.

– Padre Formoso relatou que os Tapes não eram amigáveis e promoviam muitas guerras com outros povos, o que podemos considerar comum para aquela época. O ideal era o padre estar acompanhado de um índio, pois isso ajudava em um primeiro contato – fala.

Os índios guaranis são originários do norte do Brasil e, desde o século 7 da era cristã, migravam do norte da Amazônia para o sul da américa. Os padres da Companhia de Jesus, quando se alocaram nas margens do Rio Uruguai e se estabeleceram por ali, conheceram os guaranis, que lhes ajudaram a fundar reduções na região. O professor relembra que “à medida em que os padres vão adentrando no território, recebem o auxílio dos guaranis, e assim é ao chegarem por aqui. Os guaranis passam o máximo de informações aos padres sobre os Tapes e sobre a região”.

Redução de São Cosme e São Damião

​Em meados de 1635, o objetivo ao chegar aqui era iniciar o “processo de guaranização dos Tapes”, com a criação da Redução de São Cosme e São Damião. Essa redução, que usava um vasto território da região, inclusive o que hoje corresponde a Santa Maria, é um aldeamento indígena organizado e administrado pelos padres jesuítas.

Conforme relata Júlio Quevedo, esse processo foi bem conflituoso, pois houve resistência dos Tapes em se render à uma nova cultura e perder território. Após muitos conflitos, os mais jovens foram se interessando pelos costumes guaranis e se mostrando mais abertos:

– Os mais jovens foram se interessando pela cerâmica, horticultura, a cultivar a erva-mate, tomar chimarrão, inclusive são influenciados a aprender a língua guarani. Os mais velhos foram muito resistentes, não aceitavam “se render” a esses novos costumes. Depois, a criação do gado é introduzida por aqui e os mais jovens trabalham nessa área também.

Com essa influência, o professor reforça o “quão importante é diferenciar essas etnias, pois os Tapes não eram os Guaranis, o que aconteceu foi uma guaranização dos Tapes, que foi forçada”.

Em 1640, tem fim a experiência da redução aqui e o padre Formoso migra para a região de Santa Rosa, mais precisamente onde hoje é Porto Vera Cruz, para se organizar na banda do rio ocidental do Rio Uruguai, onde hoje é território da Argentina. Milhares de tapes, segundo relata Quevedo, foram levados para essa nova região e lá, um ano depois, acontece a Batalha de M'Bororé:

– Se tem informações de que indígenas Tapes da redução de São Cosme e São Damião, ou seja, daqui, lutaram nessa guerra e ajudaram a derrotar os Bandeirantes. Depois de um tempo, migraram para onde atualmente é o Paraguai e lá ajudaram a fundar uma redução também chamada de “São Cosme e São Damião”, que deu origem à cidade de San Cosme y Damián.

Estância de São Luiz Gonzaga

​Após alguns anos, os jesuítas, acompanhados por alguns indígenas, voltam para o Rio Grande do Sul e iniciam o processo de formação dos Sete Povos das Missões.

Nesse ponto, o historiador conta que o padre Antonio Formoso percebeu um problema: que a criação de gado estava depredada, então era necessário organizar esses animais em currais e iniciar o processo de estâncias missioneiras, cada uma responsável por uma quantia de gado. Foi nessa organização, que a estância de São Luiz Gonzaga foi criada:

– Essa estância abrange um território muito vasto, que hoje corresponde às cidades de Santa Maria, Agudo, Novo Cabrais, Cachoeira do Sul, entre outras, chamadas na época de postos. Cada posto tinha uma capela, centralizada, e a comunidade, composta por indígenas, morava ao redor.

No momento em que essas estâncias são criadas, com funções de criar e cuidar do gado, cultivar a agricultura e cuidar das fronteiras, os portugueses já estão se organizando para um domínio maior, após a construção de um forte no território que seria chamado, anos depois, de Rio Grande.

– Os portugueses iniciaram o processo de expansão de leste para oeste do território e esse processo chegou até aqui, quando houve o conflito com o índio posteiro, assim chamado o responsável por cuidar desse local – reforça Quevedo.

O professor conta que, através dos relatos anotados pelos padres na época, os conflitos passaram de maneira constante desde então. As motivações eram por etnias e também pelas disputas de gado e terra, envolvendo indígenas e “homens brancos”. A situação fica tão conflituosa, que tanto os reis de Portugal e Espanha decidem assinar o Tratado de Madri, em 1750, para demarcar de vez as fronteiras. Os indígenas se opõem a essa decisão, pois se recusam a sair do território e então tem início a guerra guaranítica, entre os anos de 1754 e 1756.

Com a derrota dos índios, há a dispersão de uma parcela deles para outras cidades, inclusive para Santa Maria. Nesse momento, conforme afirma o historiador, já não é mais possível distinguir Tapes ou Guaranis; todos são chamados de índios missioneiros

Durante o período que compreende os anos de 1756 e 1797, esse território foi dominado por estancieiros e os índios missioneiros trabalhavam como peões de estância. Segundo Júlio, o trabalho se dava “de forma quase escravista”.

Ilustração da primeira capela erguida onde hoje fica a Avenida Rio BrancoFoto: reprodução

Na época em que o território de Santa Maria era um posto, que pertencia a colônia de São Luiz Gonzaga, foi construída uma pequena capela, na altura onde hoje fica o canteiro central, na Avenida Rio Branco, de costas para a ferrovia. Ao lado dela, havia o primeiro cemitério da cidade.

– Como era uma comunidade pequena na época, o cemitério ficava onde hoje está o canteiro central, localizado entre a herma do Coronel Niederauer e o prédio da SUCV, dentro da cidade – conta Binato.

Após quase um século, em meados de 1909, a capela entrou em ruínas e a matriz foi construída: a Catedral Metropolitana.

O acampamento

​Quem relembra essa parte da história é o arquiteto e produtor cultural Luiz Gonzaga Binato de Almeida. Ele conta que, neste período, os militares, responsáveis por fazerem a demarcação dos limites entre Portugal e Espanha, se instalaram no espaço correspondente a Praça Saldanha Marinho, nos anos de 1797, após todo o processo de luta e domínio do local. Eles construíram suas casas na atual Venâncio Aires e Rio Branco:

– É muito interessante a origem destes nomes. Já houve tentativas de mudar o nome “Acampamento”, por exemplo. Mas a cidade faz questão de lembrar a origem dele.

O arquiteto Francisco Queruz explica que antes do acampamento da comissão demarcatória, já estavam em Santa Maria portugueses próximo ao Arroio da Ferreira. Já os espanhóis estavam fixados em São Martinho da Serra. Por se tratar de um ponto estratégico: seco, alto, de fácil defesa, Santa Maria nasce em torno da atual Praça Saldanha Marinho. 


Primeira foto que se tem registro da Rua do AcampamentoFoto: reprodução

A aldeia

​No século 19, em meados de 1801, uma parcela de indígenas da etnia guarani chega na cidade após fugirem da redução de São Miguel das Missões e se alocam onde hoje fica o Complexo Hospitalar Astrogildo de Azevedo (antigo Hospital de Caridade), nas imediações da Avenida Presidente Vargas. 

Esse ponto da cidade era chamado de “região de Aldeia”, justamente porque era um território verde, com florestas e foi dominado pelos índios, que ali viveram por quase um século. Nessa altura do campeonato, a rua do acampamento se interligava justamente à rua da aldeia, na qual essa comunidade ficava. 

Com a urbanização da cidade, índios e brancos se aproximaram e foi nesse momento em que a miscigenação começou a acontecer. Aqui, Binato reforça a importância do indígena para a construção da primeira população santa-mariense.

Já no fim do século 19 e início do século 20, a área verde foi diminuindo, o Doutor Astrogildo funda o hospital e assim os índios iniciaram o processo de migração para outros pontos da cidade. 

– Aqui, afirmo que eram índios da etnia guarani por causa de registros de nascimento da época, que reforçam isso. Esses índios migraram para onde hoje é o posto de saúde Erasmo Crossetti, na Rua Floriano Peixoto. Na década de 70 foi feita uma escavação e foram encontrados vestígios arqueológicos dessa época – relembra Julio Quevedo.

Atualmente, Santa Maria tem duas comunidades indígenas: a Kaingang e a Guarani.


No mapa é possível ver a localização da capela e cemitério onde hoje é a Avenida Rio Branco, próximo da praça central. A Rua da Igreja (Av. Venâncio Aires)b era o caminho que ligava o Centro aos quartéis, como segue sendo até hoje


O conto que conta a história

Conhecido por muitos, o conto da Imembuí foi produzido pelo pesquisador e escritor João Cezimbra Jacques e publicado em 1979. 

Na história a moça indígena e o portugues se apaixonam. E como bem narra o conto, filhos surgem da miscigenação

– Sangue indígena nutre o gene de Santa Maria – pontua Binato. 

A conexão com a cidade e tão grande que lugares e personagens da história estão presentes em Santa Maria de muitas formas, como o extinto Parque Imembuí; a rádio Imembuí, fundada em 1942; o Edifício Imembuí, os hotéis Itaimbé e Morotin. 

Mural de Eduardo Trevisam representa a história da Lenda da ImembuíFoto: Gabriel Haesbaert (Diário/ Arquivo)

A cidade dos quartéis

Estrategicamente, Santa Maria desde muito cedo cresce da presença militar. Distantes da fronteira, a cidade é chave para a defesa do território. 

– A cidade já nasce militar, até porque o nome da principal rua na época faz ligação com o acampamento dos militares portugueses – afirma Binato.

Com o passar dos anos, a cidade passa a expandir a partir da Rua da Igreja (atual Rua Venâncio Aires) em direção a região oeste, justamente onde se encontra a região dos quartéis, no bairro Boi Morto.

Nessa época, era necessário proteger as fronteiras contra Argentina e Uruguai simultaneamente e aqui era o ponto perfeito para isso; até hoje a localização da cidade é considerada estratégica.

Atualmente, Santa Maria abriga o terceiro maior contingente militar do Brasil, perdendo para Brasília e Rio de Janeiro, respectivamente.

Um salto de desenvolvimento

Também foi pelas condições geográficas estratégicas que o trem chega em Santa Maria e a cidade se desenvolve de outra forma. 

No fim do século 19, as ferrovias entram em cena. Com o objetivo de traçar uma reta entre Porto Alegre e Uruguaiana, Santa Maria inaugura sua estação férrea em 1885. Pensando mais uma vez de forma estratégica, aqui era um ótimo ponto de partida para a Argentina e o Uruguai. Mais tarde, são construídas ferrovias para São Paulo e outra para Rio Grande e Porto Alegre. Conforme afirma Binato, “era uma rosa dos ventos, pois conseguia apontar para todos os lados”. O ponto da ferrovia, na Gare, não foi escolhido à toa:

– Foi estratégico também. Ali o terreno é plano, pois o trem não podia fazer subidas e descidas. Por isso aquela localização foi escolhida – revela Binato.

Aos poucos, a região em torno da ferrovia vai ganhando vida e 84 casas foram construídas para uma parcela dos funcionários; com isso surge a Vila Belga.

Com o comércio em crescimento e o ‘boom’ da ferrovia, era necessário um elo entre a Rua do Comércio (atual Rua Doutor Bozano), e a ferrovia: é nesse momento que a Avenida Rio Branco é criada.

Consequentemente, Santa Maria dá um salto em desenvolvimento, principalmente na região central da cidade. Diversos hotéis foram criados para receber o público que chegava através dos trens, além das novas lojas que iam surgindo ao longo da Avenida Rio Branco. Aos poucos, o elo entre ferrovia, Avenida Rio Branco, Rua do Acampamento e a Rua do Comércio (atual Rua Dr° Bozano) ficava cada vez mais forte.

Em 14 de abril de 1874, era inaugurada 1° a linha férrea do Rio Grande do Sul, 33km que ligaria Porto Alegre a São Leopoldo.



Vocação para a educação

Em 1922, pensando em beneficiar a vida dos filhos dos operários, duas escolas de artes e ofícios foram construídas aqui. Na esquina entre a Rua dos Andradas e Avenida Rio Branco, ficava a escola de ofícios para os filhos homens dos funcionários da ferrovia. Atualmente, ali está o mercado Carrefour. Já a escola feminina ficava na Rua José do Patrocínio, onde hoje é o Colégio Estadual Manoel Ribas.

Com os constantes avanços, a cidade já contava com duas escolas de formação: Farmácia e Odontologia. Mas um personagem, chamado José Mariano da Rocha Filho, tinha o desejo de trazer para a cidade uma universidade completa, objetivo que se concretizou em 1960: a Universidade de Santa Maria, sendo primeira universidade federal do interior, que traz um avanço referente a educação, se tornando um forte polo escolar na região.

Na época, a orientação de criar universidades em áreas afastadas fez com que a UFSM ficasse longe do centro urbano, contribuindo para o crescimento e desenvolvimento do Bairro Camobi.
Atualmente, com 63 anos de fundação, a universidade conta com cerca de 20 mil universitários, distribuídos em 274 cursos.


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